Hatshepsut a) Livro de Ísis
Carne é só carne, quando carne apenas nada é. Fúria. Anagénese. Vida sem fluxo, supérfluo desígnio. Mente erradicada, paixão sem dono e mestre. Carroça sem condução. Diletante consciência abrasiva. a discência começa fácil, e ali, onde o Homem sofrendo se cala, um Deus permitiu-lhe dizer a verdade. Sonhar sem sonhar, viver sem viver, morrer sem tentar, o ditame das locuções invade:- Serás minha! Amo-te. E amar-te é respirar-te. Não corres o risco de me matar, pois sem ti já morto estou. Deriva à minha existência algum calor em teus braços, pois nos pergaminhos da loucura a nossa história perdurará. É Amor. Amor esse é uma lei. Com o seu próprio tribunal e os seus próprios julgamentos, e à luz deles rogo a minha inocência, pois a demência que me atingiu, a mim não pertence. Aniquilai teus olhos que me desprezam, oh melíflua princesa... Dar-me-ás o teu coração visto que nem a mim eu me pertenço? Sendo eu teu, a ti me entrego.
Era difícil dizer que sim, que não. Nada, nunca. Amanhã, talvez. Sintético e ecléctico.
- Moribundo sem certezas. Um caminho. Síncrise. – ele era.
Morta ou vazia, rainha ou imperatriz, deusa ou princesa. Nada ou dada. Viva sem sonhos. Sonhos de vida. Quimera sem existência. Um ambiente de amoníaco entrelaçado com o cheiro uniforme do marfim. Carcaças bestiais impregnam a esfera com o pútrido aroma inerente. Rubis e esmeraldas incrustadas nas paredes remetem aos pensamentos as alucinações convictas infligidas pelo Absinto. O coração palpita descompassadamente, irreverente. Nos seus olhos, um circundante ermo, vazio como ela própria; anestésicos, lapidavam o seu despojado sorriso, como um certame entre a paixão e angústia, a dilecção e a abominação.
- A paixão que descreves com teus olhos apenas parte dela é. Apenas sentes as palavras, quando as palavras isso mesmo são. Tua miragem apenas sou. Louco... Tua demência imunda repugna-me.
Uma bênção indelével parecia cuspir incursões de índoles romanceadas, longe da própria realidade. Estaria ela hoje longe ou perto? Fria por certo. Senmut retorque apaziguadoramente:
- Negar-me-ias quando teu coração te ordena o meu beijo? Livre de ti, reclamas a tua alma quando nada confeccionas com ela. Livra-te da tua solidão, rainha. Oferece-me o teu coração, o teu corpo. Ilude-me. Mente-me! Faz-me sonhar! Fingirei viver...
Uma imperatriz do mundo, eloquentemente só, de repente sente-se fraquejar. Os olhos carmesins do tresloucado postulante invadem seu, aparentemente forte, espírito. Seu peito cede e, esperançosamente, pergunta-se se poderá ser feliz. Sua existência, prolífica em pesadelos, clama a ela própria esta paixão, pois seu coração denegado aos Deuses, exige para si a chama imensa: todos os beijos, todos os toques... Seja o que for que alimente a ardência eterna será sempre um sacrilégio aos olhos desta crença imortal.
- Tua loucura desata a minha complacência. Tua tolice o meu perdão. A tua deslealdade afronta a minha devoção. Anúbis jamais te perdoará por tal solene insolência. Vai enquanto podes... A fúria de meu irmão abater-se-á sobre ti e aí nem o teu enxame de delírio poderá poupar-te à fome de Osíris.
Sentido a mente dela fraquejar Senmut preparava-se para aproveitar o ímpeto:
- Deusa... – murmurou, quando foi interrompido.
- Tal coração corajoso comove-me. Porém, os Deuses exigem meu desprezo. Embora meu ânimo se renda a ti. Tal insensatez custar-te-á caro, pois o perdão a meu irmão nada diz. Seu coração há muito se deixou dominar pela escuridão, dissipou-se entre as trevas. Apaixonou-se por seus olhos, pois nada vê para além deles. Tua mente apaixonada impele-me ao seu ardor. Mas a prudência e quem eu sou convencem-me a não lutar.
- Amor é uma coisa que em si não conhece prudência nem medida; não podes governá-la pela prudência. – defende-se - Por todo o amor desprezado, pelos elementos infernais! Eu queria conhecer algo mais atroz, para assim exprimir a minha maldição. Não pergunto, não me preocupo se existe culpa no teu coração; eu sei que te amo, quem quer que sejas.
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