Lost to Apathy

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Cassandra a)

Estava sentado na Gulbenkian, como fazia alguns dias, algum sem tempo atrás. Já me tinha consumido em fumo algumas vezes no meio do entretanto.
O céu não parecia radiante. Apercebi-me de um tímido Sol um pouco além. Para um astro tão brilhante, parecia de repente muito pouco radioso. Ela haveria de me explicar a sua eterna melancolia. Irritante, ainda assim, enervava as nuvens à sua volta. Elas, soltas, acinzentadas em ódio sustiam com dificuldade o seu desejo em chorar.
Ao meu lado cadáveres de folhas desenhavam a paisagem à minha volta enquanto, num corrupio, o vento segurava os meus pensamentos levando o meu espírito algures para longe do meu corpo.
Estava frio dentro de mim. Creio que fora também.
Tornou-se tarde, o dia. A noite invadiu-me o relógio.
Enamorava-me a olhar para o telemóvel enquanto as horas arrebatavam-no sem pudor.
De repente olhei para o lado.
Nada vi.
Olhei novamente, e só a vi a ela. Vou ser franco, o seu sorriso. Nada mais.
Sem fazer perguntas sentou-se ao meu lado e sorriu. Aguardou uma resposta.
Eu nada disse.
Olhou-me novamente com os olhos de avelã e apresentou-se, como se sorriso dela não tivesse dito tanto à partida. Disse-me que o nome dela era Cassandra . Eu respondi-lhe hesitante:
«Olá Cassandra, eu sou o Igor»
«Pareces-me preocupado, Igor. Que te ocupa a mente?» - disse ela questionando-me com o seu olhar sorridente.
Sorri de volta em vazio.
Expliquei-lhe que pensava em Amor. Mas cedo tive de corrigir, assim que ela me explicou que não sabia ao certo o que isso era.
«Amor?»
«Sim, as perguntas desesperam-me, mas acho que sempre tive medo das respostas.»
Ela parou por momentos antes de me dizer «Estás à procura Dele?»
Ri-me. «Não, ora ai está uma lição que já aprendi»
Ela riu-se de volta. «Quer-me parecer que achas que sabes umas coisas...»
«Sim! Creio que sim» - disse, acho, hesitante, com medo que a minha resposta não fizesse jus à minha pretensão.
Antes que eu pudesse acrescentar qualquer coisa vi nos olhos dela a minha ignorância. Ela apercebeu-se do meu vacilo e questionou-me acerca dos meu conhecimentos de amor.
Comecei hesitante «Por vezes, para alguns, é uma musica...»
«E para ti?» - interrompeu-me.
Aí inspirei-me. Falei-lhe de rombos e oceanos, de toques e delicadezas. Expliquei-lhe, da mesma forma que, como Ómega, regurgitei para outros ouvirem. No final acrescentei já em êxtase «É fazer sentir no beijo o toque e no toque o desejo. No desejo o torque que me espera com toque do beijo. É respirar uma essência na discência de um ego. Olhar tão longe e só ter aquele universo» - respirei - «Iluminar. Enfim, o Amor é belo»
Quem diria, numa noite igual a outras, algures num jardim em Lisboa, iria Eros revelar-se a mim. Foi assim que Cassandra me falou dos mistérios do amor. Pela boca de Platão, Sócrates disse aquilo que já tinha ouvido de Diotima, e foi isso mesmo que ela me explicou.
«Dizes que quando estás apaixonado, num estado em que referes que o amor habita em nós, é como se o universo estivesse concentrado na outra pessoa. Isso não é necessariamente falso. Platão diz que, em certo sentido, o universo realmente está nessa pessoa. Tu só precisas transformar essa dimensão e ver não apenas a pessoa, mas o universo nela.»
Concordei.
Ela olhou-me profundamente sondando os meus pensamentos que entretanto haviam sido entregues pelo vento. Compreendi que não tinha chegado da mesma forma que tinham vindo. Talvez tivessem sido sacudidos pela noite.
Perguntou-me serenamente «Achas então que o Amor é belo?»
«Se falamos do amor que exaltei há momentos, sei que é, só pode ser. Quando amamos, subitamente vemos, não a manifestação da beleza, mas a beleza em si. Esse é o ponto alto dos sagrados mistérios. O amor expressa-se como a manifestação eterna da beleza em si. Apaixonamo-nos pela essência que torna belas todas as coisas.»
Parou uns segundos.
Sorriu.
Decidiu contar-me então a história do nascimento do Amor. Era já uma história antiga quando os antigos a contaram pela primeira vez. Diziam que era quando o tempo ainda era o Sol. Talvez na mesma altura em que a noite seduziu a Lua aos seus desígnios, mesmo antes de se adornar de estrelas como uma promessa desse amor. Bem no momento em que o Sol se escondeu envergonhado e assim o fez todos os dias, para no dia seguinte se levantar em orgulho outra vez.

Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais encontrava-se também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. A Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado. E pronto... concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite, o Amor, gerado em seu nascimento, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, é corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.

Sustive a respiração por alguns segundos.
«Queres dizer-me que o amor não possui em si a beleza que todos vemos?»
Ela apaziguadoramente colocou a mão na minha mão. Só aí reparei quão belas aquelas soavam em seu toque.
«O amor não é belo. o amor apenas acontece em pessoas belas, o amor persegue a beleza»
Ela depressa apercebeu-se do meu olhar inquisidor, algo decepcionado.
Entretanto, demasiado depressa para que eu pudesse ter visto, um insecto voou perante mim fazendo-me olhar para cima. Quase não tinha reparado como o céu já se tinha vestido de noite. Sendo que o Sol, no seu ritual diário, se havia escondido em vergonha perante o fado que lhe foi ditado. Não sei porquê, mas a noite parece-me sempre tão grande...

(continua)