Cassandra a)
Estava sentado na Gulbenkian, como fazia alguns dias, algum sem tempo atrás. Já me tinha consumido em fumo algumas vezes no meio do entretanto.O céu não parecia radiante. Apercebi-me de um tímido Sol um pouco além. Para um astro tão brilhante, parecia de repente muito pouco radioso. Ela haveria de me explicar a sua eterna melancolia. Irritante, ainda assim, enervava as nuvens à sua volta. Elas, soltas, acinzentadas em ódio sustiam com dificuldade o seu desejo em chorar.
Ao meu lado cadáveres de folhas desenhavam a paisagem à minha volta enquanto, num corrupio, o vento segurava os meus pensamentos levando o meu espírito algures para longe do meu corpo.
Estava frio dentro de mim. Creio que fora também.
Tornou-se tarde, o dia. A noite invadiu-me o relógio.
Enamorava-me a olhar para o telemóvel enquanto as horas arrebatavam-no sem pudor.
De repente olhei para o lado.
Nada vi.
Olhei novamente, e só a vi a ela. Vou ser franco, o seu sorriso. Nada mais.
Sem fazer perguntas sentou-se ao meu lado e sorriu. Aguardou uma resposta.
Eu nada disse.
Olhou-me novamente com os olhos de avelã e apresentou-se, como se sorriso dela não tivesse dito tanto à partida. Disse-me que o nome dela era Cassandra . Eu respondi-lhe hesitante:
«Olá Cassandra, eu sou o Igor»
«Pareces-me preocupado, Igor. Que te ocupa a mente?» - disse ela questionando-me com o seu olhar sorridente.
Sorri de volta em vazio.
Expliquei-lhe que pensava em Amor. Mas cedo tive de corrigir, assim que ela me explicou que não sabia ao certo o que isso era.
«Amor?»
«Sim, as perguntas desesperam-me, mas acho que sempre tive medo das respostas.»
Ela parou por momentos antes de me dizer «Estás à procura Dele?»
Ri-me. «Não, ora ai está uma lição que já aprendi»
Ela riu-se de volta. «Quer-me parecer que achas que sabes umas coisas...»
«Sim! Creio que sim» - disse, acho, hesitante, com medo que a minha resposta não fizesse jus à minha pretensão.
Antes que eu pudesse acrescentar qualquer coisa vi nos olhos dela a minha ignorância. Ela apercebeu-se do meu vacilo e questionou-me acerca dos meu conhecimentos de amor.
Comecei hesitante «Por vezes, para alguns, é uma musica...»
«E para ti?» - interrompeu-me.
Aí inspirei-me. Falei-lhe de rombos e oceanos, de toques e delicadezas. Expliquei-lhe, da mesma forma que, como Ómega, regurgitei para outros ouvirem. No final acrescentei já em êxtase «É fazer sentir no beijo o toque e no toque o desejo. No desejo o torque que me espera com toque do beijo. É respirar uma essência na discência de um ego. Olhar tão longe e só ter aquele universo» - respirei - «Iluminar. Enfim, o Amor é belo»
Quem diria, numa noite igual a outras, algures num jardim em Lisboa, iria Eros revelar-se a mim. Foi assim que Cassandra me falou dos mistérios do amor. Pela boca de Platão, Sócrates disse aquilo que já tinha ouvido de Diotima, e foi isso mesmo que ela me explicou.
«Dizes que quando estás apaixonado, num estado em que referes que o amor habita em nós, é como se o universo estivesse concentrado na outra pessoa. Isso não é necessariamente falso. Platão diz que, em certo sentido, o universo realmente está nessa pessoa. Tu só precisas transformar essa dimensão e ver não apenas a pessoa, mas o universo nela.»
Concordei.
Ela olhou-me profundamente sondando os meus pensamentos que entretanto haviam sido entregues pelo vento. Compreendi que não tinha chegado da mesma forma que tinham vindo. Talvez tivessem sido sacudidos pela noite.
Perguntou-me serenamente «Achas então que o Amor é belo?»
«Se falamos do amor que exaltei há momentos, sei que é, só pode ser. Quando amamos, subitamente vemos, não a manifestação da beleza, mas a beleza em si. Esse é o ponto alto dos sagrados mistérios. O amor expressa-se como a manifestação eterna da beleza em si. Apaixonamo-nos pela essência que torna belas todas as coisas.»
Parou uns segundos.
Sorriu.
Decidiu contar-me então a história do nascimento do Amor. Era já uma história antiga quando os antigos a contaram pela primeira vez. Diziam que era quando o tempo ainda era o Sol. Talvez na mesma altura em que a noite seduziu a Lua aos seus desígnios, mesmo antes de se adornar de estrelas como uma promessa desse amor. Bem no momento em que o Sol se escondeu envergonhado e assim o fez todos os dias, para no dia seguinte se levantar em orgulho outra vez.
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais encontrava-se também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. A Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado. E pronto... concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite, o Amor, gerado em seu nascimento, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, é corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.
Sustive a respiração por alguns segundos.
«Queres dizer-me que o amor não possui em si a beleza que todos vemos?»
Ela apaziguadoramente colocou a mão na minha mão. Só aí reparei quão belas aquelas soavam em seu toque.
«O amor não é belo. o amor apenas acontece em pessoas belas, o amor persegue a beleza»
Ela depressa apercebeu-se do meu olhar inquisidor, algo decepcionado.
Entretanto, demasiado depressa para que eu pudesse ter visto, um insecto voou perante mim fazendo-me olhar para cima. Quase não tinha reparado como o céu já se tinha vestido de noite. Sendo que o Sol, no seu ritual diário, se havia escondido em vergonha perante o fado que lhe foi ditado. Não sei porquê, mas a noite parece-me sempre tão grande...
(continua)