Lost to Apathy

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Hatshepsut c) Livro de Osíris

Uma mão vagueia nas sombras carregando a morte consigo, ela rasteja nas profundezas do nada à espera de não ser reconhecida. Consigo trás um frasco com a solução para a dissolução antecedida por carícias enfermas.
-Sorte a nossa que não tememos algo mais forte do que nós... uma dose de esperança irá arrumar as emoções em sarcófagos. Humm... Vai escrava, leva o veneno ao estômago certo...

A mão ardilosa segue o seu caminho hesitante, parece uma tarefa descomunal que enfrenta naquele momento. Sendo escrava, não tem naturalmente autorização para falhar nos desígnios de seus amos... Sem pensar ela serpenteia-se entre os corredores faraónicos do palácio onde esboços de hieróglifos contam a história da sua escravidão. Ela pensa na sua vida, na falta dela, até que observa, de repente, uma porta entreaberta de onde sobressai a luz e o cheiro de um candeeiro de azeite.
-Uma bebida meu senhor?
-Que me trazes escrava?
-Um mistura violeta para ti, para teu conforto. Tomá-la-ás para teu descanso?
– Para o seu também, para o de todos eventualmente –
-Deixa o cálice... e vai, preciso de sonhar...

Senmut, um corajoso. Um desafiador... Ousou desrespeitar as leis de moral, religião... mas a única lei que ele realmente conhecia era a lei do Amor. Era o seu único propósito viver sobre a insígnia da paixão. Pobre tolo. A vela incandescente começou a falhar ao ponto de escurecer o quarto onde se encontrava serenamente sentado meditando no imbróglio de paixão que vivera dias antes... Uma brisa invadia o quarto tomando um pequeno arrepio o corpo de Senmut... era o sinal que o seu corpo precisava para se convencer a desperdiçar algumas horas da sua existência, sem se aperceber que a sua lei por si só era uma condenação de brevidade. Olhou para a mesa ao seu lado e verificou a bebida que a escrava lhe havia deixado algumas horas antes. Olhou para o infinito e de um só trago engoliu o veneno salpicante que lhe submeteu a alma. Sentiu-se sacudido por um ardor interno que lhe invadia as vísceras. Impelindo o seu corpo minguante, estava uma força interna, um demónio em revolução que lhe consumia as entranhas. Por entre os espasmos de dor inconsistentes exclamou com a réstia de vida que o demónio lhe facultou:
- Matar-me-ás para sempre? Tu, tirano entre os Deuses e Homens, Amor!
Doce Princesa, adeus. Imolai as memórias que ao vosso coração ofendem, pois nada são sem meu sentimento. Não poderia eu ser perdoado mantendo os despojos de meu saque. Meu sangue ao veneno pertence e o resto é silêncio.


Epílogo:

As notícias voaram de forma subtil, mas de forma dilacerante... voaram sim, novamente aos ouvidos de alguém: longe, num outro mundo, onde um vivo-morto compadece-se de si mesmo:
- Osíris, dai-me força para rezar, meus joelhos não se agacham, meu espírito não quer perdão. Duas vidas foram tomadas, mas apenas uma carrega a morte para sempre. Limpai das minhas mãos a cicuta assassina, pois tal maldição, não mereço. A traição em minha casa e minha mente, a meus desígnios não pertence, deverei culpar alguém senão os próprios Deuses quando minha inocência é tomada de assalto por rumores injuriosos? Juro pelo Nilo e meu reino que meu coração amaldiçoado jamais poderá sonhar. Troco o meu lugar no Vale dos Reis para desposar minha rainha e nem todos os monumentos poderão expressar fielmente a dor em meu peito, pois a mulher a quem pretendo, despreza meu sentimento entregando-se ao arquitecto de meu sofrimento. Nem à vingança tenho direito.
Do rio que tudo arrasa todos falam, ninguém fala nas margens que o comprimem. Oh cruel injustiça divina que me toma...

De entre lágrimas de silêncio, a eternidade espera o nosso pó, que render-se-á às evidências: quando compreendermos que somos nós que fazemos acontecer tudo que ocorre em nossa existência, então, estaremos numa posição de saber que até fazemos os outros acontecerem em nossas vidas para termos a quem culpar. Assim, perceberemos que não há nada a perdoar, porque não há nada a julgar e ninguém para culpar.

-Rainha, o veneno foi entregue...

sábado, dezembro 03, 2005

Hatshepsut b) Livro de Seth

O limbo entre o perigo e a felicidade, ónus do contentamento, aparecia calmamente, mas sufocante. Poderia renunciar a seu irmão para, a seus braços, recolher o coração de um outro alguém? Mas aquele toque enfermo deliciava seu corpo árido lembrando a si que o corpo ordena, mas não pensa. Juras eternas fluíam como um rio, ninguém questionava a perenidade das mesmas, embora o encantamento não fosse imortal agiram como nada disso interessasse...
Completamente, seus corpos amaram-se.
Amaram-se no tempo que pareceu ser para sempre...

Interlúdio

Assim o julgou Ísis, deusa do amor entre a Terra e o Céu, que se comprazia com cruel alegria a subjugar ferreamente, diferentes formas e almas. Mas o devaneio de dois corações nada diz a quem um não possui. Filho de nada, morto à nascença, uma cominação surge do escuro. Carregado como um céu nublado que preparava sua tempestade. Já seu nada coração minguou até buraco se tornar. Que se passava? Que se passava? Ainda não havia provado o fruto do amor, mas sabia já o quão amargo era. Ramsés. Terceiro da sua geração, filho de seu tio. As novidades voam longe como as mentes apaixonadas, são tão rápidas, tão mortíferas que não podem estar erradas...
-Mas quem ousa? Mas quem é? Retiram o mundo de meus pés. Invadem minha casa, minha cama e levam a esposa que me ama. Feitiçaria... por certo, juro o que sei estar correcto. Os deuses já me abandonaram. Oh que brado aos céus minha dor, ciente que nada fiz para merecê-la! Serei escravo deste ardor sabendo a sorte que me espera. Mil pesadelos, sentirei, enfim, assolando minha alma. Não por ela, não por mim, mas por aquele que me resvala. Alguém tem que pagar!

Fim do Interlúdio

Noutro mundo almas fundem-se numa só, transformam-se em éter serenamente num imbróglio de dilecção. Paixão, Furor. Um ópio de emoções torna emoção em psicoses, psicoses em sensações, fragilidade em sentimentos. Ele cresce a cada segundo.
- Agora que sou teu, minha alma repousa em teus braços. Injustamente feliz, recolho os despojos de minha vitória. Minha honra não tem espaço aqui, neste mundo tão teu... Sou eu um o vencedor dos vencidos, um demónio no paraíso.
- Mas querido amante... Temo pelas consequências de nossos actos. O Sol não irá perdoar tamanha traição, serão as flechadas o nosso fim? Ou a imortalidade o nosso destino.
-Tamanha duvida não conquista a minha atenção... para quê perdão, quando o único crime terá sido amar-te?

Uma névoa descomunal atravessava a planície. Olhando à volta, o mundo tinha a distância de um simples metro. De entre a bruma apenas saltavam ténues cores que remetiam a algo parecido com a realidade: a mente de Senmut.
No espírito de Hatschepsut aquelas horas de loucura pareciam uma condenação, a inquietação proliferava mais do que os prazeres da carne. Sentia-se culpada. Vítima e criminosa. Os seus esforços intensos da conquista do trono de faraó remeteram-na a um Inverno de tristeza, e a Primavera de sensações que experimentara ameaçava levá-la ao esquecimento eterno a que tentava desesperadamente escapar. Poderia o amor suportar aquele peso? A Faraó, uma deusa na terra. Demasiado poder. Poder Absoluto...

- Surgiu Luz-

No manto de penumbra surge Ramsés, arrastando-se agarrado às paredes justificando o seu vazio absoluto e a sua podridão interior. Afastou-se para seus aposentos calmamente e avassaladoramente inquieto; moveu a triste porta, demasiado pesada, e acomodou-se em sua esteira. Os pensamentos derrubavam-no como socos veementemente mais fortes que a sua falta de espírito.