Hatshepsut c) Livro de Osíris
Uma mão vagueia nas sombras carregando a morte consigo, ela rasteja nas profundezas do nada à espera de não ser reconhecida. Consigo trás um frasco com a solução para a dissolução antecedida por carícias enfermas.-Sorte a nossa que não tememos algo mais forte do que nós... uma dose de esperança irá arrumar as emoções em sarcófagos. Humm... Vai escrava, leva o veneno ao estômago certo...
A mão ardilosa segue o seu caminho hesitante, parece uma tarefa descomunal que enfrenta naquele momento. Sendo escrava, não tem naturalmente autorização para falhar nos desígnios de seus amos... Sem pensar ela serpenteia-se entre os corredores faraónicos do palácio onde esboços de hieróglifos contam a história da sua escravidão. Ela pensa na sua vida, na falta dela, até que observa, de repente, uma porta entreaberta de onde sobressai a luz e o cheiro de um candeeiro de azeite.
-Uma bebida meu senhor?
-Que me trazes escrava?
-Um mistura violeta para ti, para teu conforto. Tomá-la-ás para teu descanso? – Para o seu também, para o de todos eventualmente –
-Deixa o cálice... e vai, preciso de sonhar...
Senmut, um corajoso. Um desafiador... Ousou desrespeitar as leis de moral, religião... mas a única lei que ele realmente conhecia era a lei do Amor. Era o seu único propósito viver sobre a insígnia da paixão. Pobre tolo. A vela incandescente começou a falhar ao ponto de escurecer o quarto onde se encontrava serenamente sentado meditando no imbróglio de paixão que vivera dias antes... Uma brisa invadia o quarto tomando um pequeno arrepio o corpo de Senmut... era o sinal que o seu corpo precisava para se convencer a desperdiçar algumas horas da sua existência, sem se aperceber que a sua lei por si só era uma condenação de brevidade. Olhou para a mesa ao seu lado e verificou a bebida que a escrava lhe havia deixado algumas horas antes. Olhou para o infinito e de um só trago engoliu o veneno salpicante que lhe submeteu a alma. Sentiu-se sacudido por um ardor interno que lhe invadia as vísceras. Impelindo o seu corpo minguante, estava uma força interna, um demónio em revolução que lhe consumia as entranhas. Por entre os espasmos de dor inconsistentes exclamou com a réstia de vida que o demónio lhe facultou:
- Matar-me-ás para sempre? Tu, tirano entre os Deuses e Homens, Amor!
Doce Princesa, adeus. Imolai as memórias que ao vosso coração ofendem, pois nada são sem meu sentimento. Não poderia eu ser perdoado mantendo os despojos de meu saque. Meu sangue ao veneno pertence e o resto é silêncio.
Epílogo:
As notícias voaram de forma subtil, mas de forma dilacerante... voaram sim, novamente aos ouvidos de alguém: longe, num outro mundo, onde um vivo-morto compadece-se de si mesmo:
- Osíris, dai-me força para rezar, meus joelhos não se agacham, meu espírito não quer perdão. Duas vidas foram tomadas, mas apenas uma carrega a morte para sempre. Limpai das minhas mãos a cicuta assassina, pois tal maldição, não mereço. A traição em minha casa e minha mente, a meus desígnios não pertence, deverei culpar alguém senão os próprios Deuses quando minha inocência é tomada de assalto por rumores injuriosos? Juro pelo Nilo e meu reino que meu coração amaldiçoado jamais poderá sonhar. Troco o meu lugar no Vale dos Reis para desposar minha rainha e nem todos os monumentos poderão expressar fielmente a dor em meu peito, pois a mulher a quem pretendo, despreza meu sentimento entregando-se ao arquitecto de meu sofrimento. Nem à vingança tenho direito.
Do rio que tudo arrasa todos falam, ninguém fala nas margens que o comprimem. Oh cruel injustiça divina que me toma...
De entre lágrimas de silêncio, a eternidade espera o nosso pó, que render-se-á às evidências: quando compreendermos que somos nós que fazemos acontecer tudo que ocorre em nossa existência, então, estaremos numa posição de saber que até fazemos os outros acontecerem em nossas vidas para termos a quem culpar. Assim, perceberemos que não há nada a perdoar, porque não há nada a julgar e ninguém para culpar.
-Rainha, o veneno foi entregue...